Marcelo Moura
Advogado e Sócio na Marcelo Moura Advogados Associados
Pós Doutor em Direito e Economia
Gustavo Brauner Perera
Advogado Associado a Marcelo Moura Advogados Associados
Especialista em Direito Penal Econômico
Em 2023 completa 10 anos de vigência da denominada Lei das Organizações Criminosas, editada com objetivo de aperfeiçoar os mecanismos de “tratamento do crime organizado” no sistema penal brasileiro. O referido diploma legal, para além tipificar o crime de organização criminosa e outros comportamentos, trouxe um complexo de regras de natureza processual, relativas aos meios de obtenção de provas, investigação e procedimento criminal, que permanecem sendo objeto de importantes discussões no âmbito científico e jurisprudencial.
No que tange às condutas criminalizadas na lei 12.850/13, nos limites dessa abordagem, destaca-se o crime de “embaraço/obstrução da justiça”, tipificado no artigo 2º, § 1º, que apresenta norma equiparadora e determina que: incorre nas penas de 3 (três) a 8 (oito) anos e multa, (sem prejuízo das penas correspondentes a infrações praticadas pela organização), quem impede ou embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.
Nos termos da lei:
Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa. (grifo nosso)
Como se vê no dispositivo legal, o tipo penal carrega a pretensão de tutelar a Administração Justiça, criminalizando comportamentos que atentem contra o adequado andamento da investigação criminal promovida pelo Estado. Mais especificadamente, refere-se aos atos que dolosamente violam prerrogativas legítimas do ente estatal que realiza uma atividade inquisitorial, associada às organizações criminosas e suas atividades.¹
Nesse sentido, revela-se como norma tipificadora construída no afastamento das diretrizes da estrita legalidade, trazendo significativa abertura - vagueza e amplitude -, na medida em que não apresenta de forma taxativa os comportamentos que podem obstruir ou embaraçar a investigação. ²
Optando pela expressão “de qualquer modo”, o legislador consagra flagrante descomprometimento com o princípio da legalidade, preceito que visa assegurar aos cidadãos o conhecimento anterior dos exatos contornos daqueles comportamentos considerados delitivos pelo poder estatal (nullum crimen, nella poena, sine lege praevia, estricta, escrita e certa).
Levando em consideração tais observações, no que diz respeito à interpretação dessa norma, é evidente que sempre será restringida pela diretriz que impõe a preservação dos direitos fundamentais do investigado - tais como o direito à defesa, o direito à não autoincriminação, o direito à privacidade, entre outros.
E é justamente, na tênue linha divisória que demarca a preservação da integridade da investigação e o respeito aos direitos do investigado, que reside o ponto central da reflexão proposta neste texto, qual seja: a estrita legalidade e o elemento subjetivo do tipo.
Nesse sentido, vale relembrar que é teoricamente consolidado - numa perspectiva finalista - que o dolo é composto de dois elementos: a vontade (elemento volitivo) e a representação (elemento cognitivo). Deste modo, de maneira simplificada pode-se dizer que, além de querer realizar o tipo objetivo de um crime, o agente deve ter conhecimento de todos os contornos típicos de sua conduta.
Vale referir que, para a configuração do tipo penal, é necessária uma conduta que impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa (objeto material do crime).
Deste modo, é indispensável, no sentido objetivo, exista uma investigação criminal acerca de crime/atuação de organização criminosa. E, no sentido subjetivo, que o autor tendo conhecimento da existência de uma investigação criminal relativa à organização e atue a partir desse conhecimento para impedi-la ou embaraçá-la.
Deve ter em conta, ainda, que o crime aqui analisado se trata de delito considerado acessório, cuja existência está condicionada à consumação prévia do crime de organização criminosa. Deste modo, conforme alerta ZONTA, “a investigação que vise a desvelar organização criminosa inexistente ou não suficientemente descrita não permitiria a imputação da prática de obstrução de justiça, visto que a moldura fática específica não estaria completa.”³
Portanto, somada à existência da investigação específica, o agente que prática atos que embaraçam ou obstruam, deve ter efetiva consciência de sua existência. Como lecionam FELDENS e TEIXEIRA⁴, se o sujeito, por qualquer motivo, ignora que seu comportamento interfere na investigação de uma infração penal envolvendo uma organização criminosa, ele age sem dolo e, portanto, não prática o comportamento previsto na Lei 12.850/13, conforme o artigo 20, caput, do Código Penal brasileiro.
Do mesmo modo, não incide o dispositivo em tela quando a investigação criminal versar sobre crimes de associação ou suas atividades ou sobre crimes praticados em concurso de pessoas, mesmo que eventualmente o agente tenha conhecimento de sua existência. Um exemplo que pode nos remeter, inclusive, para o complexo debate acerca do erro de tipo (que não pode ser aprofundada nesse breve texto).
Relevante reforçar que o princípio da legalidade proíbe a interpretação extensiva dos tipos penais, vedando a utilização de recursos interpretativos que dão maior alcance às normas incriminadoras.
Em síntese, para a prática do crime exige-se a existência e a ciência de uma investigação criminal concreta (temporal e espacialmente determinada). Mais do que isso: é fundamental que a conduta do agente atente sobre a investigação de infração penal que envolva organização criminosa. Nessa moldura, enquadra-se o crime de obstrução da justiça no Brasil.
Sendo assim e ressalvada a necessidade de continuidade no debate, parece claro que interpretações que avançam traçando contornos mais amplos ao tipo, fogem ao que estabelece o princípio da legalidade.
1 Outras reflexões sobre o tema podem ser encontradas em: BITENCOURT, Cezar Roberto; BUSATO, Paulo César. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei 12.850/2013. São Paulo: Saraiva, 2014. CALLEGARI, André Luís. Controle social e criminalidade
organizada. In: CALLEGARI, André Luís;
MASIERO, Clara Moura; MELIÁ, Manuel Cancio; BARBOSA, Paula Andrea Ramirez. Crime organizado: tipicidade - política criminal - investigação e processo: Brasil, Espanha e Colômbia. 2. ed. rev. e
ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. FELDENS, Luciano; TEIXEIRA, Adriano. O crime de obstrução de justiça: alcance e limites do art. 2.o , § 1.o , da Lei 12.850/2013. São Paulo: Marcial Pons, 2020.
2 Sobre o tema conferir Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 5.749.
3 ZONTA, Ivan Navarro. Obstrução de justiça: análise do crime à luz do direito de defesa / Ivan Navarro Zonta. - Curitiba, 2022. 1 recurso on-line: PDF. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-graduação em Direito. p.44.
4 FELDENS, Luciano. TEIXEIRA, Adriano. O crime de obstrução da justiça: alcance e limites do artigo 2°, parágrafo 1°, da lei n° 12.850/13. São Paulo: Marcial Pons, 2020. pp. 53/54.